quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Uma leitura das relações de poder no universo simbólico do Mapinguari. *

Recortes da Cena Contemporânea desta semana inicia com um trecho da crônica de Rachel de Queiroz, intitulada Mapinguari. Poucos sabem que a escritora viveu dois anos de sua vida em Belém. A crônica em tela resulta desta experiência em terras paraenses. Convidamos nosso leitor a se debruçar sobre ela, que assim diz: “Noite de lua, no terreiro, os homens procuram se esquecer do assunto eterno que é a falta de chuva e recordam histórias do Amazonas.
Recordam é modo de dizer: desses todos que estão aí nenhum foi do tempo em que se ia para o Amazonas, e o que sabem ouviram de pais e avós. Contam os casos clássicos de boto e curupira, e hoje saiu em cena um bicho pouco falado, o Mapinguari.
Bicho não, que o mapinguari tem a figura de um caboclo gigante, três metros de altura, pés espalhados e braços enormes. Anda nu, o corpo azeitão e pelado é liso, sem o menor arranhão de mato. Cabelo só tem na cabeça, curto e ruivo, deixando à vista as orelhas pontudas.
Foto: Cedida


Foto: Cedida

Mapinguari só come coisa viva. O gosto dele é morder na carne quente e sentir o sangue esguichar. Come guariba e outros macacos que apanha nas árvores, com muita fome, é capaz de se agachar à beira d’água tentando pegar algum peixe de couro; de escama não gosta. Mas a comida predileta do mapinguari é mesmo gente e, só quando lhe falta carne de homem, come a dos bichos. Quando caça, imita pio de pássaro e voz humana; mas só sabe dar uma fala fininha, esquisita, que mal engana à distância.
Pois um dia saíram para o mato dois seringueiros, e um deles se chamava Luís. Pouco além se separaram, tomando cada um a sua estrada de trabalho. Mas não estavam afastados, tanto que um ouvia a machadinha do outro a abrir o corte do leite na seringueira. Passou-se um tempo, e o que não se chamava Luís reparou que já não escutava a batida do companheiro. Prestou atenção – nada. Por um momento, teve a impressão de que ouvia a pisada de bicho grande quebrando o mato, mas devagar, cuidadoso. Teve medo e gritou: “Luís!”.
E como se visse de longe, uma vozinha fina respondeu: “Luíííííís!”
Ai, por que tão fina a voz de Luís? E por dizia Luís em resposta, se ele que chamara não se chamava Luís? Assustado, insistiu “Luís!” E de novo o gritinho, como um eco: “Luís! Luíííííís!”
O caboclo aí compreendeu que era o mapinguari imitando a sua voz. Não quis saber mais de nada e, morrendo de medo, meteu-se pelo mato, trepou numa árvore alta e se escondeu entre os galhos. […] – Trecho da crônica Mapinguari de Rachel de Queiroz.
O Mapinguari é uma narrativa de teor místico oriundo da cultura oral do norte do Brasil. Segundo ela, o Mapinguari habita as matas da floresta amazônica. Tal como acontece com toda estória procedente da cultura oral, o Mapinguari foi passado de pai para filho, de boca em boca, através de conversas paralelas em ambientações várias. E dessa forma, o mesmo se moldou ao longo da história desde sua “criação” até os tempos de hoje. Fato esse que explica a razão do Mapinguari ser um ente multifacetado quando se trata de suas características físicas, algo que discorreremos ao longo deste artigo. Pouco se sabe sobre a origem do mito, mas o número de estudos sobre o Mapinguari vem aumentando quantitativamente, e através destes estudos, temos certa “iluminação” quanto a etimologia desse encantado da floresta.
O Velho Mundo, ao longo de sua formação sendo formatado a partir de um imaginário prenhe de seres místicos e míticos. Alguns deles eram gigantes com características semelhantes ao Mapinguari, alguns possuíam apenas um olho, outros apenas um pé, alguns com pés voltados para trás, outros com bocas ou olhos em seus peitos ou umbigos. Esses seres habitavam ilhas ou lugares pouco habitados do Velho Mundo, sendo temidos pela população de tais lugares, que acreditavam veemente em sua existência. Deste modo, acreditamos que o Mapinguari seja uma (re)leitura (re)significada destes seres mitológicos que “existiram” há centenas de anos atrás na Europa. O que explica suas variações e semelhanças entre esses seres.
Em algumas localidades do Brasil, o Mapinguari é descrito como ser de pelo ruivo, uma grande boca no lugar do umbigo ou do peito, enquanto em outras localidades ele possui um olho em seu rosto/testa e outro olho em seu umbigo, outras localidades o Mapinguari tem pés voltados para trás – assemelhando-se ao Curupira, outro ser encantado da Amazônia – demostrando assim que a configuração física do Mapinguari muda de acordo com o contexto geográfica e a ressignificação simbólica de cada local, “O olho no meio da testa não é o mesmo do olho do umbigo do Mapinguari. O olho de cima é o olho do patrão. O da barriga é de quem trabalha”. – (Trecho da obra Do Olho do Umbigo do Mapinguari, de Jones Dari Göettert).
Göettert emprega o Mapinguari como vassalo do Seringalista, entregando-o a função de subjugar o seringueiro em favor do Seringalista, criando um sistema hierárquico baseado em medo e violência dentro do Seringal. Acima de tudo, o Mapinguari é empregado como crítica social ao sistema feudal retratando um período da história do Acre e da Amazônia.
Alguns acreditam que o Mapinguari existe no plano real e já habitou nossas florestas. Essas pessoas acreditam que o Mapinguari nada mais é que uma bicho-preguiça gigante, sendo tal hipótese bastante usada na ficção, “(…) É que alguns estudiosos admitiam a hipótese de esses animais constituírem uma espécie de elo perdido. Talvez, alardeavam, fossem remanescentes de preguiças gigantes que povoaram a América do Sul há milhões de anos”. – (Trecho da obra Mapinguari – O Devorador de Cabeças de Rogério Andrade Barbosa).
E também é sustentada por relatos recolhidos por autores como Valdir Vegini que publicou recentemente a obra “O Monstruoso Mapinguari Pan-Amazônico” pela Editora Temática de Porto Velho/RO.
No Acre, o Mapinguari é uma figura “popular”, fazendo parte do senso comum da população, trata-se de uma figura carimbada quando se fala do folclore local, temos esculturas do mesmo em nosso Parque Ambiental Chico Mendes e também temos as belíssimas esculturas do Mapinguari e de outros seres fantásticos de nosso cardápio imaginário no jardim da casa do artista plástico Enock Tavares que fica na Vila Custódio Freire. Isso demonstra que o Mapinguari também é um ser multimidiático, transcendendo seu ambiente simbólico e imaginário dentro da cultura oral do povo amazônida.
Em outras mídias, o Mapinguari é retratado como protetor da Floresta, um agente da natureza quando se trata de preservar seu habitat e o equilíbrio existente na Natureza. Comumente, a trama trata de algum crime ambiental sendo cometido por alguma empresa ou pessoa física, é quando Mapinguari entra em cena, assustando, afugentando e, algumas vezes, assassinando os vilões da trama, que ousam perturbar o frágil equilíbrio entre flora e fauna que existe na Floresta.
Deste modo, verificamos a complexidade do ente encantado amazônico, que se constrói nas diversas ideologias sociais. Atendendo a mecanicidade do feudo, o Mapinguari se unificou a cultura do povo amazônida, sendo, assim, componente elementar na história de seus povos, na medida em que representa o ser protetor e visionário da floresta amazônica.
Aldeir Paiva de Oliveira ¹ Dr.ª Simone de Souza Lima ² – Acadêmico do quinto período do curso de licenciatura plena em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Acre, bolsista de Iniciação Cientifica/UFAC e voluntário do grupo PET-Letras ¹, Docente do curso de licenciatura plena em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Acre, doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, orientadora do programa de Iniciação Cientifica e tutora do grupo PET-Letras ²

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